Nos bulevares doentes, as almas pendentes

Viciosa é  a presença, onde descansa
toda a dor, aquele grito escorregadio.
Queria estreitar nos braços a criança
trôpega, ainda espera o sortilégio vazio.


É onde aquecem-se as mãos no lume -
os dedos gélidos pela fome corrosiva -
para que lentamente a noite se avolume
com tantas entregas à morte lasciva.


Não há abrigo para tamanhos desatinos,
surrupia-se o pão e oferta-se a alma,
deixam ir os ardores pequeninos.
Por fim, os grilhões provocam a calma.


Na sua latente crença de mortalidade,
encontram sustentação em meio ao entulho.
Com os olhos quebrados e repletos de idade,
com as bocas tortas, os sonhos sem barulho.

deram-me flores e folhas,

deram-me flores e folhas,
cobriram-me de orações,
pessoas no ir-vir eterno,
e eu ali, jazida doce.
você jogou-me pétalas secas,
mal murmurou palavras,
olhou rapidamente meus cabelos soltos,
e partiu - e eu ali, jazida doce.

Do jardim ao Letes

Eu revelei-me demais e o sei,
desnudei ombros e pescoço
e toda a sombra que eu inventei
caiu sobre meu antro insosso.


Não sei o que espera da minha fala,
já eu, espero que estoures a mudez,
apesar da vida que me cala,
deixei de vê-lo com toda a sensatez.


Menino! Não passas disto!
Destrói-me com suas palavras,
por mim não é mais benquisto,
na espada que em todos encravas.


Carregue-se sozinho!
                        eu não quero mais.
Use de seu próprio carinho!
                       não me importa onde vais.


Eu te minto agora, não crês?
mas a verdade, por ti ignorada,
não mostrarei outra vez.
Agora sou toda alma invernada.

Prelúdio

É uma tarde em que chuvisca. O nevoeiro disfarça o céu em lusco-fusco, um traçado suave de montanhas mergulhando em neve áspera, gotas caindo no solo sedento de ar.
A moça caminha na praia.
Trilha não se vê, seus passos são demasiadamente graciosos para permitir mais do que leve impressão na areia, agora embrutecida pelo choro suave das vespertinas estrelas que espiam. A moça não se importa se vento ou brisa fustiga-lhe os cabelos castanhos, quase dourados d’água, enquanto uma onda suave vem lhe roçar nos pés uma oferenda.
O cheiro de maresia impregna o ar, enquanto a gota delicada escorre pelos cílios escuros da jovem que caminha na praia – que é deserta. Se por uma fenda o tempo vislumbrasse tal cena, deter-se-ia para ela jamais acabar. Não porque a donzela é bonita – mesmo que exista graça em seu andar adocicado -, nem mesmo porque a chuva cai. Mas, sim, porque a moça caminha na praia.
Na poética ternura andarilha, o céu chora, inutilmente, a praia deserta, porém não sozinha, absorve com cheiro de água salgada, fluxo intermitente. Alheio ao mundo que gira como esfera solta em plano, alguém sente os pés estilhaçarem uma concha rubra, água nos cílios. É a moça que caminha na praia. Sob a chuva. 

Um verso do meu lamentar

Não sei mais como te chamo, nem mesmo sei se te quero,
a ti já louvei tanto que, de tudo, me faltou ar -
nada te peço, nada me dizes, por isso, como te espero?
A cada palavra, entre meu verso, continuo a labutar.


Há muito perdeu-se meu silêncio e charme,
tramei para encantar - fugiram-me as falhas
e caíram aos teus pés, derramadas em alarme -
Teus olhos dizem 'Como pode achar que tanto valhas?'


Por tal, deixei-me afundar.
Por tal, deixei-te ir.
O que mais lhe posso dar?


Que seja um favor com seus ares tristes,
ou uma manhã que ainda nem raiou,
espero enquanto, maravilhado, assistes
o desfile da mulher que te encantou.


E na noite que me embala com descaso, suspiro,
de nada me vale mais o tão antigo fervor -
é cansado o ar que eu respiro -
quero teus olhos perto para entender o calor.

My world barely stands...

My world barely stands...
someone help Atlas!
Oh, dearest...
Oh, lovely...
I need it more than you!
For those who seek peace,
I lay down, dead.


Take the sun with iced hands
and fly off! dimly...
Go, love, to the extreme of the earth
where I watch the sky
you help to be held.

Como sou

olho não vejo nada
quero-te
olho-te não vejo
quero nada
olho nada quero
não vejo-te

Sagração de amor insone

É nessa noite tão e muito escura
que, desejosa de palavras, eu olho,
é uma folha branqueada de agrura.
Como despedaçar esse duro abrolho?
Preenchendo vastas tristezas sem cura,
falta-me um amor que recolho.

Deixei que se escoasse saudosa poeira
por entre esses dedos finos que agora fito,
e se espera o dia que mal clareia,
espreita uma solidão de doentio infinito.
Vou lentamente morfando-me em romaneira,
para cantar tudo que jamais foi dito.

Já lançando palavras como rede vazia,
criei em mim pequenas esperanças.
E cada vez que recolhi-as em agonia,
deixava aos poucos virar lembrança...
                              Mas sem poder o coração silenciar.
                              Tu não sabes o quanto dói não falar.

Relatando a cada dia um novo mito,
queria deixar aquilo que seguramente amarrava
meu corpo a uma rocha, como lento rito,
e ia me maltratando tanto que cansava.
Sem, nem ao menos, conseguir chamá-lo maldito,
nada podia, nem de nada te destratava.

Rugia, de longe, um grande, frio lume,
vermelhei-me pela claridão inexistente.
Garboso, te vi como quem se resume
a atingir meta tão mais funda, persistente.
Curvei-me perante o destino, sem queixume,
pois sei, não valho um só ato valente.

E em cadernos, borbotões de tinta
que se desfaziam perante um triste redemoinho
ao qual eu entregava uma e outra quinta
da devoção nem nascida, o meu desalinho.

Agora, quem há de entender-me?
                               Se fui eu a culpada de tantos atos?
Para que impedir a dor de arder-me?
                               Se não sou eu digna de bons tratos?

Tudo que estava à deriva se soergue,
e a ti presto homenagem, tudo como me resta,
já que para que teu espírito, de alguma forma, se vergue
preciso de algo além de laboriosa seresta.

Se tentei lhe dar uma desculpa de flor em maio,
agora ofereço um pedido repleto como um ramalhete.
O que temo é as rosas estarem fanadas, feminino desmaio,
então apenas aceite as palavras em fervoroso bilhete.
Não consigo pedir que espere enquanto da tempestade saio,
e não quero parte de mim morrendo ao golpe do florete.

Absens

- Não deixe que lhe matem.
Aquela frase, com sua súplica adoçada, penetrou no âmago da menina, que permaneceu de lápis em punho frágil – tremulando, palpitante – e os papéis espalhados pelo chão escuro. Quem a dissera? A voz aparecera como se jamais a tivesse deixado, presença constante, mas não era.
Voltou a olhar o quarto e frio percorreu-lhe os cabelo escuros, assoprando-lhe os ouvidos com palavras há muito caladas.
Ergueu-se, olhando o espelho.
Não, não se via nada além daquela sua silhueta antiga, que ela já vira em demasia. De repente, bafejou-se o reflexo e ouviu-se:
- Não deixe que lhe matem.
Ela mordeu seu lábio, o coração espreitando pela primeira vez em meses. Esperava, retesada e dura como a justiça, que aquele não fosse um sonho amargo que lhe roubaria lágrimas ao acabar:
- O que te dói? – acariciou a voz.
- Ausência... – escapou-lhe o murmúrio.
- Sempre parece triste, sabia? Eu vejo.
Ela franziu a testa marmórea e exclamou, com um arzinho petulante:
- E acha que a culpa é de quem? – arrependeu-se imediatamente.
A voz calou-se, como se pega em sua própria armadilha.
Transcorreram minutos leves, e bafejou-se de novo a superfície lisa.
- Mas você sabia... Eu avisei.
E como negar algo àquela tristeza em ouvidos apurados para a mesma. A moça suspirou, deixando os dedos brincarem no frio espelho, pontas em cacos a ferindo sem sangue – por dentro.
- Eu sei. – disse, por fim, como acuada e pequena, os olhos apertados para não chorar.
- Você ainda pode voltar. – suspirou a voz, pela primeira vez não tão bela e livre, sim, ela triste. – Pode parar de desejar minha presença e então eu sumo. Prometo.
Sacudiu a cabeça de longos e negros caracóis. Repetidamente, pois precisava mostrar sua oposição à coisa, e aquele movimento travado era tudo que traía o caos que dentro dela se instaurava.
- Quer que eu volte? – a voz sussurrou.
Os caracóis silenciaram.
O quarto se escondeu em sua própria penumbra.
- Não. – foi a resposta. Mas era mentira, como fora antes, mentira orgulhosa, estúpida, que não calava. – Não.
Contornou-se no espelho um rosto de olhos cinzentos. Ela deu um passo atrás, surpresa e grata – como sempre quando ele aparecia -, afundando naquelas nuvens que a espiavam.
- Você está definhando. Não deixe que lhe matem.
Escapou um soluço que estremeceu os caracóis. E dentro, ondas, maremotos engolindo o que restava de estupidez, de vergonha...
- Só vai embora.
- Não.
- Eu mandei ir embora!
- Não.
O punho dela estilhaçou o espelho.
...
- Agora você se machucou. 
Eram mil olhos de céu nublado, agora chovendo o sangue que brotava da mão frágil, pendente. E ela só sacudia a cabeça.
- Você só tem de ter um espelho na bolsa. – ponderou ele, franzindo as sobrancelhas. – e não se preocupar quando passarmos por lagos.
- E se você não voltar mais? – ela murmurou. – Se não achar o caminho para o meu espelho?
Ele riu, e pérolas rebrilharam nos cacos.
- Bobinha, eu estou em todos os espelhos.
- Mas você foi embora antes. – ela protestou, agora olhando preocupada a mão ardida, ardida que nem os seus olhos.
- Eu achei que você tinha mais força para que eles não te matassem.
Cílios escuros sombrearam-lhe as bochechas envergonhadas. Assoprou-se de novo a enxurrada de memórias e ela suspirou, provando para sua mesma suas fraquezas.
- Se você prometer que não vai mais me bater. – e soltou o riso. – Eu prometo que não me vou de novo.
Assentiram os caracóis, caindo sobre ombros e braços claros que agora eram cingidos por outros, braços da figura que escapava do espelho e sorria-lhe com covinhas. Olhos raiando a manhã.
- Vamos cuidar dessa mão... E comprar um novo espelho para o seu quarto. - depositou-lhe um beijo fresco na fronte.
Enrolando o machucado com um suéter colorido, ela deixou-se levar, os olhos vendo tudo novo, alegria líquida. Eles caminhavam pela calçada, bem juntos, os caracóis aninhando-se em mãos que pareciam chuva.
- Você não vai mais deixar eles voltarem, não é?
- Não, você é perigosa demais com eles agindo. – murmurou-lhe, cócegas nas orelhas.
- Obrigada, Narciso.



--
Agradecimentos à Karen Aragão pela inspiração e por tantas belas palavras. 

O mundo tem de ser desequilibrado



Parada, diante de um mar que é nascente,
te olho, com tua formosura, despida frieza.
Céu lacrimoso, me vê com teu ar cadente,
mas meu sorriso mal percebe toda a beleza.

Quais as horas que penso sem te amar?
Dá-se o peso para uma mal-escrita balança –
daquelas que já principiaram o enferrujar –
dos meus eternos ardores de criança.

Ofertei, como dádiva vazia, meu futuro.
Lancei, como revoada negra, meu carinho.
Tentando andar com uma dor que mal aturo,
tingindo meu vestido branco de vinho.

Valeu-me cada um dos sonhos quebradiços
em que a gargantilha apertava as veias.
Pensei em faces repletas de viços,
onde surrupiam-se as vidas alheias.

Fez-se o sol na minha boca quente:
exclamei palavras que nunca conhecera.
Percebendo que não importa ser inerente,
enquanto seu corpo ainda escorre cera.

Em fúrias e vento fez-se o hiato
de vozes há muito cansadas – amargando.
Eu olhei além do montanhoso retrato,
estava lá a flor do universo, latejando.

Sussurrou-me uma folha malquista:
‘Deixai de lado essa descompostura da dor.’
Porém dei-me o prazer de ser egoísta,
fremente, segui para continuar o labor.

Como não me fiz nenhum traço,
colhi apenas dois frutos do pomar,
por não entender – já tudo perfaço.
Vou fugir-me para o além-mar.

Triste nossa sina

Englobarei todo o universo!
Enxergarei todo o teu verso!
Sentirei que lhe põe de inverso,
deixarei meu coração imerso.


Valha-me tua cor reluzente,
invejo tua aura valente.


Perdoai-me, sou vazia.
Amai-me, sou fria,


me nego a amá-lo,
por medo de idolatrá-lo.


Na vida, verei-o franzir a tez,
sentirei-me morrer a cada vez;


é o orgulho medroso que nos afasta.

Rascunhando

a gente mal teve como...
       comigo ficou o tempo,
se parado, ou andando,
todojunto no conjunto...
       derrepenteou!
agente mau de filme
       porisso que eu quero meu pai.
eu não gosto muito de escrever.
       em baixo da letra,
       encima do peito,
o que vale mais é o coração.
(e isso, professora, não é poema,
porque nada tá rimando.)

Please, my lord, thou have to leave.

Please, my lord, thou have to leave.
The darkness is dripping down on me, 
do not cry, it is not hard to perceive
that thou art here not to let me be.


My God!, it aches my full heart
magnitude of love! Death, merciless...
We ought, forever, to part, 
cannot be forgotten, this death is faultless. 

Homenagem a Baudelaire

Un soir, le garçon, petit garçon
avec yeux savoureux et silencés, 
buvais du vin - misére!
Jeunne squelette.


Le ciel se lamente...
     un chaude lumiére,
     un amê solitaire, 
     un rêve.
Oui, la lune quand la terre
avec sus pomes, fatigué, 
suivent et mourir. 

Mal posso esperar o sol,

Mal posso esperar o sol,
ele queima meus olhos,
              chega com dor!
mas ao menos dá paz
durante a lua
              que ensona!
frios são aqueles
         ...como ela e ele...
que não percebem
a hora de enluar.

Durmo

Minha mão escorrega pelo cetim das cobertas.
E a Lua irradia, lá fora, toda beleza.
Passos largos na pedra fria,
ressoando lentamente no meu sono.

A rua é escura, sem lampiões,
um gato mia de solidão e fome.
Mas eu não acordo do torpor lacrimoso,
suor frio em palmas quentes de neve.

Se amanhã desperto, tão lúcida,
lembrarei da negra noite que,
com luz da Lua, me envolve?
O abraço partido do antigo sonho.

Já não há força nos passos que se arrastam,
que se arrastam pela rua.
Sob o primeiro poste, eu sei, eu vejo,
você acende um cigarro.

Oração à terra

Salgada terra que jaz aqui, sob meus ingratos pés, podes perdoar a todos os homens? Digo que a culpa realmente não recai sobre nós, e sim, sobre as gerações antigas, aqueles que, pretensiosamente, se colocaram como teus donos. Pois foram eles, bendita terra, que te colocaram abaixo de nós! Agora tu te vingas, porém olha! Não somos os únicos que te fizeram mal! Te vingue dos cadáveres!

(Achei no fim de um caderno)

O meu medo é múltiplo, são.
A pele rasga sozinha em preto e branco,
as minhas vozes gritam com vontade.
Pois tudo é uno e vários. 


Não consigo fugir, me desespero.
Lágrimas sanguinolentas em sonho. 
O vento passa, uivando o choro,
enquanto as luzes correm todas.


Dançando em fios metálicos, 
gelado beijo no espelho negro.
Eco de amor, uma vida no ódio,
sou um resquício de majestade.


Caindo por nuvens, noite adentro,
                                e voando no sol com asas enceradas.


Espero o fim de meu tempo.

Flagelo

Me cobrindo de rubis, descascando meu corpo nu
em esmeraldas sujas que rasgam minha pele.
Nos lábios uma palavra inócua, insípida,
servindo para que eu me esconda do ardido sol. 


Caindo no lajeado onde já pisei, altiva, 
naquela dor que, de tão irreal, acaricia
e, nos goles alimentando meu vazio, 
peço para perdoarem-me os pecados. 


matai-me queimai-me tudo com a ferocidade de quem quer ver a dor perfure cada canto de minha alma se desfazendo gotejante pois não há como salvar esse corpo que vazio fraco chora.


Lamento, minhas voz não consegue mais
se sobrepor aos seus olhos tão azuis e verdes.
Agora vou encolher-me para dentro da luz, 
lavando as marcas, chibatadas de fogo.


Me alce ao inferno à custa de esforço dantesco,
enforque meu sangue em seu pescoço.
Voando a fada de asas de pétala,
e meu rouco olhar persegue o mundo. 

Prelúdio para uma descrição


Os cabelos cacheados,
os olhos de jambo doce
na boca que espelha
um coração de terra natal.

Não tem nome, nem raça,
nem voz conhecida.
Tem apenas os sonhos
de criança sob o sol.

E como criança
nem tem forma.
Mas como humana
tem pernas, braços,
olhos e um nariz
que respira.

Sétimo dia


Na minha respiração há poeira,
meu arfar triste e jamais vivo.
Agindo como se fosse a coveira
do meu coração fraco e massivo.

Dei a ti palavras, pedaços...
Dei a ti uma mulher para amar...
Mas embriaguei de sonhos escassos,
agora só ouço malicioso debochar.
Se antes meu rosto tinha seu traço,
agora sou a pá a cavar.

Os dias escorridos e noites geladas!
Dirigiu-me a palavra apenas uma vez.
Como não respondi, furou-me com espadas.
Porém eu poderia estar muda, não crês?

Na terra umedecida de choros vagos...
Refogando o metal em minhas mãos...
Sorvendo minha angústia em tantos tragos
que até os abutres parecem sãos.
E a lua me espelha como mil lagos.

A mágoa que me preenche é silenciosa,


A mágoa que me preenche é silenciosa,
sorrateira como uma sombra outonal
vazando de minha boca insidiosa.
Sem previsão, quem dera fosse sazonal.

Ah, é dos outros que irradia a luz!
Cicatrizando na pele a queimadura,
marcas e traços de quem me induz
a gritar tudo aquilo que me satura.

Imbuída de valores, princípios fracos,
e de palavras, que são sempre um cordel,
eu choro, palpitando meus marcos,
no labirinto, do qual jamais vi o céu.

Ensaio Nº 17


Que na folha, na flor, no fruto
se esconde a vida, gotejante.
Na falta do eterno, se escolhe o curto,
um gosto, gesto, pedaço que adiante.

Uma troca que enebria, embebeda,
traz a força que leva ao prazer.
A ausência causa terror e veda,
não é escolha, é necessário fazer.

O sabor delineia os passos,
fibrosa, suave, ou não.
Na míriade de cores e traços,
pressente-se um azedume de limão.

E o sumo adocicado da cereja,
a amargura da verde fruta.
Enfim, a vida escondida que almeja
sair de sua forma tão bruta.

Máscara Mortuária


Meu caminho cheio de sofreguidão,
você roubou tal como dócil fera,
arrastou para muito longe o vazão
para qual me dediquei enquanto era
viva ou não.

Don Juan

Não negarei carinho, sorriso ou pudor,
nos deliciamos com o jogo debaixo do cetim.
Em seus orbes escuros, espelha-se o fervor,
que, disfarçado, ainda pertence a mim.

Refreando o anseio soluçante, estremeço
frente ao que derrama sua boca de libertino,
a volúpia traiçoeira que não esqueço,
minha ofensa se torna seu desatino.

Seu arfar e sorriso esgarçado, tão crus,
metamorfoseiam-me em pássaro fugidio.
Não pode ser príncipe armado em andaluz,
e sim, jovem bandido de força e brio.

Terei a culpa eterna se, ao condená-lo,
sair caminhando com discreto enfado.
Pela ponte dos que suspiram, ao levá-lo
por conta de um simples beijo roubado.

Uma golfada de dor tragou de vez minha alma,


Uma golfada de dor tragou de vez minha alma,
que havia se agarrado ao teu barco...
Mas veio uma geada que não acalma,
e fui levada pela espuma como um marco.

Não havia mais uma palavra que me beijasse
como tantas outras haviam feito, doçura.
Porém na água salgada havia quem pintasse,
naquele jeito tristonho, a minha loucura.

Uma dama anoitecendo para teu sorriso.
Teus olhos cegos pelo orgulho e pelo prazer,
não sentiu o fim de nosso efêmero paraíso,
nem percebeu que me deixou morrer.

Pequena história

I


Café-da-manhã, muito doce,
faca lambuzada com morangos.
E um sorriso amanteigado e escorrido,
açúcar mascavo salpicado na toalha

Eu mexo o leite tostado.
Você suspira ao olhar o jornal.

Um grito maternal nos escapa.
Sirvo-lhe mais chá de cidreira
mas não conseguimos que os olhos vejam.
O que rebrilha na cerâmica do bule
são lágrimas.

II

Já se foi o eixo, à trabalho,
no silêncio da apatia que nos cerca.
Na poltrona, espero o relógio,
que se foi ontem e não voltou.

Na sala, os crochês clarinhos
se foram ao amanhecer.

Soergo minha carcaça enfraquecida
mas o movimento se quebra, vergando.
Em meu dedo fino de moça,
algo aperta como espinho
de rosa.

III

Você chega, já tirando o telefone
do gancho, fechando janelas.
Ouço tudo da cozinha, esperando.
Minhas mãos de espuma lavam o bule.

Num furor, você começa
discurso desajeitado, cheio de pena.

Mas se vê refletido em meus olhos,
calando um sepulcro que é salvação.
Esboça um esgar que mal parece sorriso,
sentamo-nos junto em frente ao mármore,
é frio.

IV

Acordo sob o cobertor acetinado - acordo?
Não, não há despertar, nem ao menos dormi.
Cambaleando até a sala, até a mesa.
Um sufoco constante pesa sobre meus olhos,
tão vazios que inexistem.
Marcando o final de um longo livro.

Sorvo algo que se assemelha à dor.
Meu corpo veste apenas frágil roupão,
que parece se desfazer quando você chega,
encarando à mim e ao bule, quente.

Não há mais candura quando, cansada,
me levanto e caminho até ti.

Como se ofendido pela penumbra, e por mim,
agora você só vê a cerâmica.
E num gesto de bravura hercúlea,
joga longe o que vive em seu rosto.
Ignorando minha débil exclamação,
vai para o quarto, sem palavras,
vai embora e me deixa, sozinha,
a encarar os cacos e as manchas de chá.

Adeus

Diga quanto mistério, quanta graça exponho
na tentativa de esmiuçar minha vida por seus olhos.
Enquanto no coração cresce, tão pequeninho,
algo que me segue como trem nos trilhos.

Cavaleiro em armadura prateada de latão,
preenchendo um vazio que não é seu.
Como transformar em humano são
alguém tão desprovido de calor como eu?

Me soltará para o além como pássaro, como colibri?
Espere, me segure mais um pouco no seu abraço.
Nesse universo imenso e escuro eu já vi, eu descobri,
que os fracos morrem antes de dar um passo.

Paisagem IV

Na manhã reluzente,
na tarde esfacelada,
no trecho pendente
da vazia estrada.

Pinta um ponto.
Soltando a poeira.

Maria-fumaça.

Oração


A cada minuto, pinto mais palavras.
Minha tez febril, minhas mãos frias.
Enquanto, lentamente, tu lavras
a máscara de outro que tem dias.

Sufoco, como se dentro d'água,
e grito para teu olhar infinito.
Se não vês meu pranto e mágoa,
teu carinho se torna mito.

Se constrói em algumas horas.
É nessas que deposito a esperança,
seja verdade que meu sorriso adoras.
Como coração sem dor de lança.

Mas não sei, não vejo fulgor.
Se entendesse, seria mais viva,
abraçaria teu corpo em flor,
sem ser luxuriosa ou lasciva.

Não espero tua compreensão,
já que imploro como mendigo.
Atada em laços como prisão,
declamo para salvador amigo.

Pedaço


Enquanto eu puder rasgar as páginas do meu pequeno caderno preto.
Enquanto eu tiver cinco flores para secar no livro grosso.
Enquanto suportar a incrível exatidão de ser anestesia de mim mesma.
Posso pintar um quarto amarelo d'ouro com quatro cantos escuros com nódoas de sangue, e um tapete azulzinho e cheio de serragem, ou talvez ferrugem de tempos onde eu plantava um jardim no meu coração de menina.

República


Enquanto vão costurando a bandeira
Com dedos ágeis e tão hábeis que doem,
Um mastro largado contra o solo de terra
As estrelas manchadas de poeira

Um menino olha pela janela e vê:
Pedaços de idéias como membros do corpo.

Rouge


Na parede escorre o brilho da sua pele
Estrela negra envolve meus braços presos
Pinta um vermelho no espelho
Desenha seu nome com carmim

E eu choro seu sangue
Derramando em mim

Cher amis,

Viva La Vogue!, esse post foi mudado para o endereço onde agora manterei textos mais... opinativos e críticos: o www.lefetichisme.blogspot.com.
Deixarei aqui o espaço literato-poético que mantive desde o começo do blog.
Arrivederci!

Inerte


Princesa,
Papel participando para proteção
Fugindo,
Faísca falando fonte festiva

Para fazer pintura fosca
Faca pontiaguda ferindo papiro

Azul,
Amanhecer ardido a ama
Trançado,
Trazendo tudo temporário

Aninha talhe amarelo, tecido
Tarde adoece, trêmula alma

Para fazer arder temor.