Absens

- Não deixe que lhe matem.
Aquela frase, com sua súplica adoçada, penetrou no âmago da menina, que permaneceu de lápis em punho frágil – tremulando, palpitante – e os papéis espalhados pelo chão escuro. Quem a dissera? A voz aparecera como se jamais a tivesse deixado, presença constante, mas não era.
Voltou a olhar o quarto e frio percorreu-lhe os cabelo escuros, assoprando-lhe os ouvidos com palavras há muito caladas.
Ergueu-se, olhando o espelho.
Não, não se via nada além daquela sua silhueta antiga, que ela já vira em demasia. De repente, bafejou-se o reflexo e ouviu-se:
- Não deixe que lhe matem.
Ela mordeu seu lábio, o coração espreitando pela primeira vez em meses. Esperava, retesada e dura como a justiça, que aquele não fosse um sonho amargo que lhe roubaria lágrimas ao acabar:
- O que te dói? – acariciou a voz.
- Ausência... – escapou-lhe o murmúrio.
- Sempre parece triste, sabia? Eu vejo.
Ela franziu a testa marmórea e exclamou, com um arzinho petulante:
- E acha que a culpa é de quem? – arrependeu-se imediatamente.
A voz calou-se, como se pega em sua própria armadilha.
Transcorreram minutos leves, e bafejou-se de novo a superfície lisa.
- Mas você sabia... Eu avisei.
E como negar algo àquela tristeza em ouvidos apurados para a mesma. A moça suspirou, deixando os dedos brincarem no frio espelho, pontas em cacos a ferindo sem sangue – por dentro.
- Eu sei. – disse, por fim, como acuada e pequena, os olhos apertados para não chorar.
- Você ainda pode voltar. – suspirou a voz, pela primeira vez não tão bela e livre, sim, ela triste. – Pode parar de desejar minha presença e então eu sumo. Prometo.
Sacudiu a cabeça de longos e negros caracóis. Repetidamente, pois precisava mostrar sua oposição à coisa, e aquele movimento travado era tudo que traía o caos que dentro dela se instaurava.
- Quer que eu volte? – a voz sussurrou.
Os caracóis silenciaram.
O quarto se escondeu em sua própria penumbra.
- Não. – foi a resposta. Mas era mentira, como fora antes, mentira orgulhosa, estúpida, que não calava. – Não.
Contornou-se no espelho um rosto de olhos cinzentos. Ela deu um passo atrás, surpresa e grata – como sempre quando ele aparecia -, afundando naquelas nuvens que a espiavam.
- Você está definhando. Não deixe que lhe matem.
Escapou um soluço que estremeceu os caracóis. E dentro, ondas, maremotos engolindo o que restava de estupidez, de vergonha...
- Só vai embora.
- Não.
- Eu mandei ir embora!
- Não.
O punho dela estilhaçou o espelho.
...
- Agora você se machucou. 
Eram mil olhos de céu nublado, agora chovendo o sangue que brotava da mão frágil, pendente. E ela só sacudia a cabeça.
- Você só tem de ter um espelho na bolsa. – ponderou ele, franzindo as sobrancelhas. – e não se preocupar quando passarmos por lagos.
- E se você não voltar mais? – ela murmurou. – Se não achar o caminho para o meu espelho?
Ele riu, e pérolas rebrilharam nos cacos.
- Bobinha, eu estou em todos os espelhos.
- Mas você foi embora antes. – ela protestou, agora olhando preocupada a mão ardida, ardida que nem os seus olhos.
- Eu achei que você tinha mais força para que eles não te matassem.
Cílios escuros sombrearam-lhe as bochechas envergonhadas. Assoprou-se de novo a enxurrada de memórias e ela suspirou, provando para sua mesma suas fraquezas.
- Se você prometer que não vai mais me bater. – e soltou o riso. – Eu prometo que não me vou de novo.
Assentiram os caracóis, caindo sobre ombros e braços claros que agora eram cingidos por outros, braços da figura que escapava do espelho e sorria-lhe com covinhas. Olhos raiando a manhã.
- Vamos cuidar dessa mão... E comprar um novo espelho para o seu quarto. - depositou-lhe um beijo fresco na fronte.
Enrolando o machucado com um suéter colorido, ela deixou-se levar, os olhos vendo tudo novo, alegria líquida. Eles caminhavam pela calçada, bem juntos, os caracóis aninhando-se em mãos que pareciam chuva.
- Você não vai mais deixar eles voltarem, não é?
- Não, você é perigosa demais com eles agindo. – murmurou-lhe, cócegas nas orelhas.
- Obrigada, Narciso.



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Agradecimentos à Karen Aragão pela inspiração e por tantas belas palavras. 

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