Pequena história

I


Café-da-manhã, muito doce,
faca lambuzada com morangos.
E um sorriso amanteigado e escorrido,
açúcar mascavo salpicado na toalha

Eu mexo o leite tostado.
Você suspira ao olhar o jornal.

Um grito maternal nos escapa.
Sirvo-lhe mais chá de cidreira
mas não conseguimos que os olhos vejam.
O que rebrilha na cerâmica do bule
são lágrimas.

II

Já se foi o eixo, à trabalho,
no silêncio da apatia que nos cerca.
Na poltrona, espero o relógio,
que se foi ontem e não voltou.

Na sala, os crochês clarinhos
se foram ao amanhecer.

Soergo minha carcaça enfraquecida
mas o movimento se quebra, vergando.
Em meu dedo fino de moça,
algo aperta como espinho
de rosa.

III

Você chega, já tirando o telefone
do gancho, fechando janelas.
Ouço tudo da cozinha, esperando.
Minhas mãos de espuma lavam o bule.

Num furor, você começa
discurso desajeitado, cheio de pena.

Mas se vê refletido em meus olhos,
calando um sepulcro que é salvação.
Esboça um esgar que mal parece sorriso,
sentamo-nos junto em frente ao mármore,
é frio.

IV

Acordo sob o cobertor acetinado - acordo?
Não, não há despertar, nem ao menos dormi.
Cambaleando até a sala, até a mesa.
Um sufoco constante pesa sobre meus olhos,
tão vazios que inexistem.
Marcando o final de um longo livro.

Sorvo algo que se assemelha à dor.
Meu corpo veste apenas frágil roupão,
que parece se desfazer quando você chega,
encarando à mim e ao bule, quente.

Não há mais candura quando, cansada,
me levanto e caminho até ti.

Como se ofendido pela penumbra, e por mim,
agora você só vê a cerâmica.
E num gesto de bravura hercúlea,
joga longe o que vive em seu rosto.
Ignorando minha débil exclamação,
vai para o quarto, sem palavras,
vai embora e me deixa, sozinha,
a encarar os cacos e as manchas de chá.

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