Data Natalícia

- Feliz Natal.
"Como você me irrita."
- Feliz Natal você também, queridíssima.
"Que vestido horroroso, como te deixa ainda mais gorda."
- Ah, como é bom estarmos reunidos!
"Quero logo ir para casa."

A porta se abre, um a um eles saem, e para suas vidas felizes se vão. A noite de Natal acabou.
Alívio.

Diálogo

Ela olhava aqueles olhos fundos, negrume, pontos brilhantes de chama azulada pernoitando orbes líquidos. Uma pele cadavérica, luzindo como a morte, esticada sobre ossos de uma face esquecida do tempo. Lábios rachados que afundavam em si mesmos como dunas, manchas escuras sob as janelas em que se via uma alma caída, despedaçada.

Ela murmurava para aquele rosto triste, agarrada a uma esperança, tentando fazer soar a batida calma daquele coração vazio. O olhar desconexo, o sorriso perdido, nada brotava da chuva cálida que derramava seu pranto sobre doentia imagem. Sentimento abandonou-a, ela pensava em desistir, quase gritando para aquele rosto que ele precisava viver.

Ela, então, deu as costas para o espelho.

Picture

And God have mercy of a lonely soul. As we die, you and I, through the darkness and light of forgotten childhood, pledging our love to each other, a humming bird carries a flower to the mausoleum.

Autobiografia

Era uma vez uma princesa idiota que tentou fugir para o céu, para se esconder nos raios de sol e ser feliz. Ela caiu da torre e nunca mais sorriu.

Era mais idiota que princesa.

Daisies


Flipping the pages of an old book,

Dancing with tears in my eyes for the memories

Filling my sorrowful past of roses

Take me on your back and make me see

The cotton clouds and lacquered skies

As we turn into broken glass

My joy and pain are unique and clean

Such a princess, such a demon

She climbs through my soul, ripping my dress

Oh! Darkness trades my shadow for bright golden dust

And falling on my knees, the rain pouring

Makes my head spin in candy colored drops

I’m young and old, a corpse.

Estrela D'Alva


Correndo como se não houvesse tempo em sua eternidade,

Ela desmaia sobre templos, mausoléus,

Um corpo partindo em cera de sonho, uma nuvem no olhar


Caminho curvo


O grito de uma mente que anoitece

Em cacos, luzes girando nos círculos passados boca a boca

Esgarçando os buracos de cetim rendado


Caminho morto


Anjo.

Evanescente

Os passos delicados que surgiram da névoa eram tão densos quanto os sonhos que haviam sido imaginados pelos homens. Por um momento, o clamor da batalha desapareceu sob as asas de anjo que agora se espalhavam por toda a terra veiada de sangue.

Ela abriu a boca, sem som ou silêncio saindo de sua garganta profunda, mas sim orvalho de noite fresca. A luz que invadia o centro de seu olhar era como força irresistível ou cegueira que desaparecia em meio ao calor instantâneo.

O desejo que inundava agora os corações presentes era de uma viagem longa, enquanto os corpos caíam um a um, como se despedaçados por seu próprio veneno. Quer fossem amados ou não, todos se misturavam às cinzas e pedaços do céu, perfurando aço e carne com o um só ser.

E depois que ela passou, o campo estava vazio.

Epitáfio

Enquanto o mundo gira com suas incessantes luzes, a vida pulsando em ritmos variados ao redor do globo, em cores de dia e noite, eu me deito aqui, nessa cama de hotel, segurando em minha mão um vidrinho de pílulas para dormir.

Mais uma prova de que ninguém é necessário. Quando eu fechar meus olhos para sempre, tudo continuará igual, no seu ciclo eterno. Essa falsa idéia que se tem, essa idéia de que há algo de necessário em sua própria existência, é provavelmente o maior engodo que já existiu. As pessoas buscam em seus semelhantes essa cálida fonte, essa energia que faz tão bem para um ego ferido, para um coração humano que bate em busca de carinho. Somos todos apenas crianças. Até mesmo eu, nessa lúcida maturidade com a qual penso sobre essa mentira, me pergunto se alguém sentirá minha falta, e quanto.

Não é engraçado que, nesse instante infinito, eu não permita nem um tremor de hesitação?

No alto de meus dezenove anos, minha velhice disfarçada de juventude, eu não quero mais viver. Não pretendo fazer desse momento um drama, causar um rebuliço que não me servirá de nada. A passagem para a morte, quando é feita por escolha, deve ser algo para si próprio e não encenado para os outros, pois nunca deve ser um ato de fuga impensada, ou de revolta vingativa. Nunca vi nenhuma razão para esse tipo de suicídio.

Para mim, a vida precisa ser uma desilusão para você deixar de querê-la. E no meu caso, é apenas uma variante disso.

A leveza dos anos de infância me impediu de ver, cega pela aparência de conhecimento que se apropriava de mim, o que a vida é hoje em dia. Lamento que tenha vivido no que chamamos de sociedade moderna, nos dias atuais, cercada do contemporâneo. Ah, que pena que não posso criar uma fenda no espaço-tempo, fenda que permitiria ao escape para um mundo surreal, atemporal, um refúgio onde eu me embrulhasse na cortina dos anos, vivendo como aia da rainha desse universo inexistente: a Arte.

A sua beleza magnificente foi apagada pelas luzes de néon violeta, dourado, verde, furta-cor da atualidade. O som de passos impessoais dos vultos, todos uniformes, modulando suas vozes para discorrer sobre temas que são grandiosos demais para sua compreensão insignificante, fazem meus ouvidos doerem com dor de surdos. Ver seus gestos tão bruscos, mesmo os que deveriam ser suaves, faz com que meus olhos ardam como se estivessem cegos, em um frenesi que mistura meu maior medo com o maior sonho daquele que brinca conosco. Pobres seres humanos!

Por isso, agora estou aqui, olhando para esse teto descascando a tinta branca que o cobre, e em minha mão está o vidro gélido que carrega minha morte. Chegou a hora de me despedir do que quer que me reste na vida, ou seja, de juntar os fragmentos do que faz tudo se rejuvenescer. Os meus fones de ouvido vibram com a maestria de Beethoven. Für Elise me parece bastante agradável para o momento. Afinal, quantos podem dizer que morreram ao som de algo dedicado à eles?

Sento-me na cama, sentindo a textura do algodão sob minhas pernas, como uma carícia de um amante maltratado, mas persistente. Enquanto abro a tampinha do vidro com a maior delicadeza possível, meu corpo se retesa, antecipando a hora em que o deixarei para sempre, tal como o casulo deve prever a saída da borboleta. Meu corpo vazio, meu embrulho... Pretendo deixá-lo de tal forma que não importune o mundo com seu vácuo existencial. Utilizar-me da Arte para fazer com que minha saída desse lugar seja também bonita. Mais um movimento no mundo.

As pílulas têm cheiro de plástico, como quase tudo que me cerca. Beijo-as suavemente, uma a uma, e se seguem por um gole de água, cujo gargalo da garrafa queima, com sua frieza quase metálica, meus lábios grossos. Não as conto, pois acho que a matemática destruiria minha idéia de fazer isso da forma mais tranqüila possível. Um número exato seria muito dramático. Por fim, o vidro ficou vazio, tal como é o mundo ao meu redor. Por um segundo, me perco na contemplação dessa realidade que me atingiu agora, quando a vida se esvai lentamente, gota a gota, do meu corpo humano e quebradiço.

É possível exprimir toda a humanidade em um vidro vazio de soníferos.

Agora estou deitada, e me encolho, ajeitando meus membros na posição mais natural que encontro, esperando que isso transmita que fui em paz, encolho-me diante do desconhecido que não temo, diante de uma escolha que agora me tirará do movimento, do mundo que gira, de suas luzes cruéis que destruíram tudo. Não tenho raiva, pois esse sentimento me impediria de sentir a calma que me domina. Em ondas suaves de música e som, em calorosas brisas que entram pelas frestas das janelas desse quarto, sobre lençóis de algodão branco, eu fecho os olhos.

Nessa quebra do espaço-tempo, eu durmo.

Ofélia


Quadro em aquarela escarlate rasgando,

Correm pelo assoalho os pequenos insetos,

Decompondo, corroendo, carne-viva,

Os gritos incessantes das estátuas rachadas


Há uma figura desenhada no teto

suas lágrimas caem no chão

Amordaçada por ser inacabada e pura

por ser conspurcada e virgem


Enquanto o vento entra pelas frestas, buracos

Balança as cortinas, levanta pó d’ouro

Rebrilha na porcelana da imagem

Na pele suja, nas roupas puídas de seda

Rosto empoado de faces vermelho-sangue

Lábios com linha preta e ensandecidos murmúrios


Os olhos são de mármore negro, são duros

e úmidos

E seu corpo claro quase se desfaz, desnuda

seu marfim


Enquanto escorre tinta pelos seus cabelos

Sangue pelo seu ventre

Morte pelo seu rosto


Tudo se despedaça em um rio de lágrimas

Sa(a)ra


Um pé na frente do outro - devagar
O sol escaldante joga fogo em seu corpo
Ela sacode seus cabelos para trás
seus olhos estão rasos d'água

Rachaduras no solo seco de seus lábios
Gemidos descem do céu e pela garganta
É o oposto do ideal, é a dor ardida
Uma dança nas areias
e três suspiros úmidos

Trêmula figura surge ao longe
Delicada e quebradiça pelas dunas
As duas são uma só; areia e mulher

Em seus sonhos não existe nada
Além de tempestades para agitá-las
Chuvas para alimentá-las
E miragens para iludi-las

Escola Literária: Barroco


Enquanto a palavra divina é passada

de boca em boca

As mentes dissecando a terra salgada

junto com a carne

Cada um vê seus próprios pecados

Línguas ferinas murmuram, conspiratórias

Suas blasfêmias contra os mandamentos sagrados

A retórica do mestre gera o silêncio

Os olhos escorregam pelo livro

matéria, sensualismo

Estão mais presentes que o ideal divino

espírito, ascetismo

O pregador particular brinca

Mas, irônico, não perdoa

Porque uma mímese de autora critica

Ele retruca, a autocrítica ecoa

(Por que ainda não me formei em Letras Atéias?)

O curso corre e, disfarçadamente,

As palavras escritas são hipócritas

afinal, sermões eu trouxe

Duramente, incito a rebelião contra o ópio

E continuo aqui, ouvindo a palavra do mestre

Frases soltas que vão contra os ensinamentos

Ah, viva o meu ódio à Igreja!

Poema dedicado ao professor Zé Edu.