A mágoa que me preenche é silenciosa,


A mágoa que me preenche é silenciosa,
sorrateira como uma sombra outonal
vazando de minha boca insidiosa.
Sem previsão, quem dera fosse sazonal.

Ah, é dos outros que irradia a luz!
Cicatrizando na pele a queimadura,
marcas e traços de quem me induz
a gritar tudo aquilo que me satura.

Imbuída de valores, princípios fracos,
e de palavras, que são sempre um cordel,
eu choro, palpitando meus marcos,
no labirinto, do qual jamais vi o céu.

Ensaio Nº 17


Que na folha, na flor, no fruto
se esconde a vida, gotejante.
Na falta do eterno, se escolhe o curto,
um gosto, gesto, pedaço que adiante.

Uma troca que enebria, embebeda,
traz a força que leva ao prazer.
A ausência causa terror e veda,
não é escolha, é necessário fazer.

O sabor delineia os passos,
fibrosa, suave, ou não.
Na míriade de cores e traços,
pressente-se um azedume de limão.

E o sumo adocicado da cereja,
a amargura da verde fruta.
Enfim, a vida escondida que almeja
sair de sua forma tão bruta.

Máscara Mortuária


Meu caminho cheio de sofreguidão,
você roubou tal como dócil fera,
arrastou para muito longe o vazão
para qual me dediquei enquanto era
viva ou não.

Don Juan

Não negarei carinho, sorriso ou pudor,
nos deliciamos com o jogo debaixo do cetim.
Em seus orbes escuros, espelha-se o fervor,
que, disfarçado, ainda pertence a mim.

Refreando o anseio soluçante, estremeço
frente ao que derrama sua boca de libertino,
a volúpia traiçoeira que não esqueço,
minha ofensa se torna seu desatino.

Seu arfar e sorriso esgarçado, tão crus,
metamorfoseiam-me em pássaro fugidio.
Não pode ser príncipe armado em andaluz,
e sim, jovem bandido de força e brio.

Terei a culpa eterna se, ao condená-lo,
sair caminhando com discreto enfado.
Pela ponte dos que suspiram, ao levá-lo
por conta de um simples beijo roubado.

Uma golfada de dor tragou de vez minha alma,


Uma golfada de dor tragou de vez minha alma,
que havia se agarrado ao teu barco...
Mas veio uma geada que não acalma,
e fui levada pela espuma como um marco.

Não havia mais uma palavra que me beijasse
como tantas outras haviam feito, doçura.
Porém na água salgada havia quem pintasse,
naquele jeito tristonho, a minha loucura.

Uma dama anoitecendo para teu sorriso.
Teus olhos cegos pelo orgulho e pelo prazer,
não sentiu o fim de nosso efêmero paraíso,
nem percebeu que me deixou morrer.

Pequena história

I


Café-da-manhã, muito doce,
faca lambuzada com morangos.
E um sorriso amanteigado e escorrido,
açúcar mascavo salpicado na toalha

Eu mexo o leite tostado.
Você suspira ao olhar o jornal.

Um grito maternal nos escapa.
Sirvo-lhe mais chá de cidreira
mas não conseguimos que os olhos vejam.
O que rebrilha na cerâmica do bule
são lágrimas.

II

Já se foi o eixo, à trabalho,
no silêncio da apatia que nos cerca.
Na poltrona, espero o relógio,
que se foi ontem e não voltou.

Na sala, os crochês clarinhos
se foram ao amanhecer.

Soergo minha carcaça enfraquecida
mas o movimento se quebra, vergando.
Em meu dedo fino de moça,
algo aperta como espinho
de rosa.

III

Você chega, já tirando o telefone
do gancho, fechando janelas.
Ouço tudo da cozinha, esperando.
Minhas mãos de espuma lavam o bule.

Num furor, você começa
discurso desajeitado, cheio de pena.

Mas se vê refletido em meus olhos,
calando um sepulcro que é salvação.
Esboça um esgar que mal parece sorriso,
sentamo-nos junto em frente ao mármore,
é frio.

IV

Acordo sob o cobertor acetinado - acordo?
Não, não há despertar, nem ao menos dormi.
Cambaleando até a sala, até a mesa.
Um sufoco constante pesa sobre meus olhos,
tão vazios que inexistem.
Marcando o final de um longo livro.

Sorvo algo que se assemelha à dor.
Meu corpo veste apenas frágil roupão,
que parece se desfazer quando você chega,
encarando à mim e ao bule, quente.

Não há mais candura quando, cansada,
me levanto e caminho até ti.

Como se ofendido pela penumbra, e por mim,
agora você só vê a cerâmica.
E num gesto de bravura hercúlea,
joga longe o que vive em seu rosto.
Ignorando minha débil exclamação,
vai para o quarto, sem palavras,
vai embora e me deixa, sozinha,
a encarar os cacos e as manchas de chá.

Adeus

Diga quanto mistério, quanta graça exponho
na tentativa de esmiuçar minha vida por seus olhos.
Enquanto no coração cresce, tão pequeninho,
algo que me segue como trem nos trilhos.

Cavaleiro em armadura prateada de latão,
preenchendo um vazio que não é seu.
Como transformar em humano são
alguém tão desprovido de calor como eu?

Me soltará para o além como pássaro, como colibri?
Espere, me segure mais um pouco no seu abraço.
Nesse universo imenso e escuro eu já vi, eu descobri,
que os fracos morrem antes de dar um passo.