Epitáfio

Enquanto o mundo gira com suas incessantes luzes, a vida pulsando em ritmos variados ao redor do globo, em cores de dia e noite, eu me deito aqui, nessa cama de hotel, segurando em minha mão um vidrinho de pílulas para dormir.

Mais uma prova de que ninguém é necessário. Quando eu fechar meus olhos para sempre, tudo continuará igual, no seu ciclo eterno. Essa falsa idéia que se tem, essa idéia de que há algo de necessário em sua própria existência, é provavelmente o maior engodo que já existiu. As pessoas buscam em seus semelhantes essa cálida fonte, essa energia que faz tão bem para um ego ferido, para um coração humano que bate em busca de carinho. Somos todos apenas crianças. Até mesmo eu, nessa lúcida maturidade com a qual penso sobre essa mentira, me pergunto se alguém sentirá minha falta, e quanto.

Não é engraçado que, nesse instante infinito, eu não permita nem um tremor de hesitação?

No alto de meus dezenove anos, minha velhice disfarçada de juventude, eu não quero mais viver. Não pretendo fazer desse momento um drama, causar um rebuliço que não me servirá de nada. A passagem para a morte, quando é feita por escolha, deve ser algo para si próprio e não encenado para os outros, pois nunca deve ser um ato de fuga impensada, ou de revolta vingativa. Nunca vi nenhuma razão para esse tipo de suicídio.

Para mim, a vida precisa ser uma desilusão para você deixar de querê-la. E no meu caso, é apenas uma variante disso.

A leveza dos anos de infância me impediu de ver, cega pela aparência de conhecimento que se apropriava de mim, o que a vida é hoje em dia. Lamento que tenha vivido no que chamamos de sociedade moderna, nos dias atuais, cercada do contemporâneo. Ah, que pena que não posso criar uma fenda no espaço-tempo, fenda que permitiria ao escape para um mundo surreal, atemporal, um refúgio onde eu me embrulhasse na cortina dos anos, vivendo como aia da rainha desse universo inexistente: a Arte.

A sua beleza magnificente foi apagada pelas luzes de néon violeta, dourado, verde, furta-cor da atualidade. O som de passos impessoais dos vultos, todos uniformes, modulando suas vozes para discorrer sobre temas que são grandiosos demais para sua compreensão insignificante, fazem meus ouvidos doerem com dor de surdos. Ver seus gestos tão bruscos, mesmo os que deveriam ser suaves, faz com que meus olhos ardam como se estivessem cegos, em um frenesi que mistura meu maior medo com o maior sonho daquele que brinca conosco. Pobres seres humanos!

Por isso, agora estou aqui, olhando para esse teto descascando a tinta branca que o cobre, e em minha mão está o vidro gélido que carrega minha morte. Chegou a hora de me despedir do que quer que me reste na vida, ou seja, de juntar os fragmentos do que faz tudo se rejuvenescer. Os meus fones de ouvido vibram com a maestria de Beethoven. Für Elise me parece bastante agradável para o momento. Afinal, quantos podem dizer que morreram ao som de algo dedicado à eles?

Sento-me na cama, sentindo a textura do algodão sob minhas pernas, como uma carícia de um amante maltratado, mas persistente. Enquanto abro a tampinha do vidro com a maior delicadeza possível, meu corpo se retesa, antecipando a hora em que o deixarei para sempre, tal como o casulo deve prever a saída da borboleta. Meu corpo vazio, meu embrulho... Pretendo deixá-lo de tal forma que não importune o mundo com seu vácuo existencial. Utilizar-me da Arte para fazer com que minha saída desse lugar seja também bonita. Mais um movimento no mundo.

As pílulas têm cheiro de plástico, como quase tudo que me cerca. Beijo-as suavemente, uma a uma, e se seguem por um gole de água, cujo gargalo da garrafa queima, com sua frieza quase metálica, meus lábios grossos. Não as conto, pois acho que a matemática destruiria minha idéia de fazer isso da forma mais tranqüila possível. Um número exato seria muito dramático. Por fim, o vidro ficou vazio, tal como é o mundo ao meu redor. Por um segundo, me perco na contemplação dessa realidade que me atingiu agora, quando a vida se esvai lentamente, gota a gota, do meu corpo humano e quebradiço.

É possível exprimir toda a humanidade em um vidro vazio de soníferos.

Agora estou deitada, e me encolho, ajeitando meus membros na posição mais natural que encontro, esperando que isso transmita que fui em paz, encolho-me diante do desconhecido que não temo, diante de uma escolha que agora me tirará do movimento, do mundo que gira, de suas luzes cruéis que destruíram tudo. Não tenho raiva, pois esse sentimento me impediria de sentir a calma que me domina. Em ondas suaves de música e som, em calorosas brisas que entram pelas frestas das janelas desse quarto, sobre lençóis de algodão branco, eu fecho os olhos.

Nessa quebra do espaço-tempo, eu durmo.